A louca solidão de um líder nato - Profissão Guarda-Redes por António Valente Cardoso



Profissão Guarda-Redes

A louca solidão de um líder nato


Ser guarda-redes é uma vocação, é um amor e um ódio, é a máxima individualidade de um desporto colectivo.

No passado e durante décadas, a escolha guarda-redes recaía sobre os ‘pés quadrados’, os ‘gordos’, todos os que demonstravam menos jeito para fazerem parte da equipa. Assim, colocavam-se na baliza, por destino ou falta dele, ganhando maior ou menor gosto pela mais ingrata posição do universo desportivo, o derradeiro culpado muito mais vezes do que o último grande herói.
Mas as redes exercem um fascínio quase imemorial. Os craques adoram fazer uma perninha na baliza. É comum nos treinos ver os mais dotados rumarem voluntariamente às balizas, voarem na tentativa de pararem os remates dos companheiros, entrarem a pés sobre os colegas de fintas e ficarem irritados quando os guardiões, feitos jogadores de campo numa total inversão de papéis, os fintam, os enganam, deixando-os de rastos, tantas vezes ajoelhados sob o peso de um golo mal sofrido.

Escolher a baliza é optar pela máxima responsabilidade, é querer ser vilão e herói, qual película cinematográfica, é assumir o papel de protagonista a solo, ninguém por trás, liderando ao mesmo tempo um pelotão defensivo, uma companhia colectiva, um exército rumo à vitória.
Voa, brilha, larga, falha, tudo pode acontecer num espaço de segundos, ao estilo do melhor filme de acção ou de um qualquer título de suspense que Hitchcock tenha delineado.
Dos 90 centímetros do Pólo Aquático aos 2,40 do hóquei em campo ou 2,44 metros do futebol, passando pelo hóquei em patins ou no gelo, pelo andebol ou futsal, pelo bandy ou floorball, escolher defender as redes do forte, do castelo, demonstra uma fé inabalável no indivíduo, um elevado nível de auto-estima, uma capacidade de liderança apenas aproximada por aquele que exige ser ele a bater o penalti decisivo. É querer decidir, é querer fazer a diferença, é querer deixar marca, é assumir o último risco, é envergar a bandeira enquanto se mantém na última linha de defesa ante o inimigo, sem cair, nunca cair!

O abraço do colega, do companheiro na hora da falha, pois todos falham, é um expressar de alívio dele mesmo. Um suspiro equivalente ao “ainda bem que não fui eu, tu é que és o guarda-redes, deixa lá”. Mas nota-se a tremideira, a falta de confiança depositada pela equipa no seu último pilar, no seu primeiro pilar. O oposto é distinto, a falha do defesa é rebatida pelo guardião do templo das redes sagradas, injecta coragem, quer o elemento à sua frente agressivo e pronto a recuperar do erro, passa-lhe a primeira bola, empurra-o para a retoma, ao nível do melhor líder.
Do mais calmo se ouve o engrossar de voz, a subida de tom para a recuperação defensiva, para a atenção à marcação, sempre a falar dentro do campo, mesmo que quase mudo fora dele. Líder, da linha da última defesa se faz ecoar até à linha de golo oponente, voz de incentivo, de aviso, de recuperação, sempre capitão mesmo sem braçadeira, sempre general mesmo sem exército, sempre soldado pronto para assegurar a derradeira linha de defesa!


A loucura de um ser. É extraordinário experimentar as posições de guarda-redes e jogador de campo, sentir as diferenças, seja no futebol, no futsal ou no andebol, para apenas tocar na experimentação própria. Ainda mais fantástico é ser louco ao ponto de ser guarda-redes de campo, olhar para Chilavert ou Jorge Campos, Luís Amado ou Marcão, ir mais além da pura defesa das redes que se querem inexpugnáveis. Agarrar uma bola e sair desenfreado rumo à baliza contrária, também é esta a loucura do guarda-redes, sair a jogar, fazer um passe letal, cobrir todo um meio-campo, saber subir, olhar o adversário com altivez, pintar toda uma metade de campo com a matiz da camisola envergada, uma camisola diferente de todos os outros, claro está! Intimidar o adversário, seja pelas loucas saídas, pelos fortes remates, pelos longos lançamentos de braço ou por um mero olhar, definidor! Tudo isto é de guarda-redes, tudo isto e muito mais! 

- António Valente Cardoso

- Jornalista, historiador e investigador desportivo

- Ideólogo do Observatório Ligas Europeias Futebol

- Autor do livro Globall, A Globalização e os Mundiais de Futebol